No carro, numa grande avenida, vislumbro o céu. Céu azul, um azul desconcertante, límpido, deslumbrante que me atrai e me remete a uma paisagem distante, pura, virgem, intocada, que contrasta com o que posso ver a minha frente – asfalto, mato seco e empoeirado de um barro vermelho, papéis amassados, muitos. Ao lado, o que outrora foi um riacho, insiste insiste em correr uma água limpa a olho nu, emoldurada por mato e solo barrento, salpicados por sacos de lixo, papéis, pedras e gravetos. Mais uma vez, destoando de todo o cenário, uma garça. Branquinha, linda, ingênua, refresca seu corpo, esbelto naquela água. Parecem cenas de um jogo de absurdo. Como podem, céu e garça, lindos, limpos, intocados, pertencer àquela paisagem já quase urbana, desordenada, com estradas sendo abertas a tratores, obras, grandes construções sendo erguidas, tráfico intenso.
Cheiro de gasolina, náuseas, a Kombi acelera e frea em meio às curvas da estrada sinuosa, estreita, úmida e cercada pela mata cerrada. Quase não se pode ver o céu e o sol, que desponta pelas nesgas das folhas verde escuras das altas árvores. Lá fora, o cheiro de mato molhado é convidativo para uma parada. Ali, fora o cheiro de gasolina, a natureza imperava: mata fechada, pássaros, insetos, cheiro de verde, sombra e sol. Rezo para chegarmos logo. Avistei a lagoa, o cheiro do mar já anunciara sua presença.
Era naquela lagoa que costumávamos vir á noite. Papai gostava de pescar siris. Trazíamos umas cadeiras, cobertores, baldes e puçás. Passávamos a noite ali, sentadas, brincando na areia cinza da beira da lagoa enquanto papai ia sumindo dentro d’água. Ficava com água na cintura. Ali, jogava um puçá, voltava, ia, jogava outro, voltava, verificava se havia algum siri nos outros puçás, e assim varávamos a noite até a madrugada. O frio fazia com que nos enrolássemos nos cobertores e nos encolhêssemos nas cadeiras. Mas não reclamávamos. Gostávamos! E adorávamos comer os sanduíches que a mamãe preparava. Torcia para que a hora do lanche chegasse logo! Lembro-me do famoso patê de sardinha.
Mais uns poucos quilômetros e já estaríamos na praia. Chegamos ao fim da linha. Saltamos e caminhamos por um beco. A areia grossa, cheia de conchas quebradas machuca meus pés ainda finos. O maiô de pano estampado feito pela mãe já é pequeno para o meu corpo que cisma em crescer rápido demais. No fim do beco, uma fila de pessoas que aguardavam a vez, a lagoa e alguns barquinhos rasos disponíveis para a travessia. O sol já queimava nossos rostos e o dia prometia. Mamãe trouxera sanduíches e frutas para o pic- nic e o dia na praia me faria esquecer daquele cheiro horrível de gasolina que me provocava náuseas.
Nossa parada era o quebra – mar. Lá podíamos brincar na água que oferecia pouco perigo e mamãe e papai podiam se distrair na areia. Não lembro bem o que faziam, mas eu adorava o mar, a praia. Adorava ver aquelas dunas de areia abundantes, branquinhas, enormes, ao longo de toda a orla ornamentada com aquelas plantas rasteiras, diferentes, que só podiam sobreviver ali. E os tatuís! Era uma festa ver tantos tatuís correndo pela areia branquinha.
Chegou a nossa vez, entramos no barco, que já na água, balançava pra lá e pra cá, com o peso de nossos corpos. Fazíamos uma corrente até que o primeiro que entrara pudesse se sentar. Depois de todos acomodados, o homem remava fortemente, fazendo o barco deslizar por aquelas águas calmas, transparentes, que nos instigava a procurar peixinhos.
Era final da década de sessenta. A então Avenida Airton Senna, antiga Alvorada, acabara de ser aberta. Não passava de uma estrada de barro, esburacada, com dunas de areia de um lado e de outro, cortada por lagoas que podiam ser atravessadas por precárias pontes de madeira... falavam que iria ser asfaltada em breve, mas quem acreditava? Mas ela livrava-me das curvas estonteantes da estrada antiga. Passávamos por ela quando éramos convidados de nossos vizinhos. Eles tinham carro! Uma Kombi! Tirando a parte que vocês já sabem, que odeio cheiro de gasolina. A viagem era uma festa! Eram cinco crianças e cinco adultos no carro. Às vezes íamos a Prainha. Era lá que o seu Waldir nos ensinava a mergulhar e a nadar. Pulávamos das pedras, mergulhávamos, nadávamos. Eu sempre engolia água. Mesmo tampando o nariz, não conseguia e ainda não consigo mergulhar sem engolir água. Sou um desastre na água! Mas não deixava de me divertir. Como eu gostava de ir ao canal. Aquela era uma oportunidade única de aprender a nadar!
Hoje, a Barra mudou e já não acho graça em mergulhar tapando o nariz, muito menos, sem tapá-lo. Também não enjoo mais. Não há mais a estrada velha. As curvas foram modificadas e ao longo dela surgiram comunidades. Uma delas é famosa: Rio das Pedras. E avenida Airton Senna, esta, já não é mais de barro. Já é de asfalto. É esta com o céu azul que contrasta com todo o resto, exceto pela garça.
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